Descrição de um movimento social



Na Zona Leste da cidade de São Paulo, moram aproximadamente 3 milhões de pessoas, na sua grande maioria trabalhadores pobres dos setores da indústria, comércio ou serviços. São mais de vinte bairros formados de casas precárias: Ermelino Matarazzo, Ponte Rasa, Itaim, São Miguel Paulista, Nitro-Operária, Cidade Líder, Vila Curuçá e mui­tos outros. Além disso, cada bairro se divide em localidades menores e mais distantes: Jardim das Oliveiras, Pedro Nunes, Monte Santo, E. Carvalho, Cangaíba. É o que poderíamos chamar de: a periferia da periferia de São Paulo.
A região é carente de serviços básicos como água, luz, asfalto, transporte, saúde e escola. A situação de extrema miséria desses bairros faz com que a sua população se reúna em organizações como Socie­dades Amigos do Bairro, Grupos de Mães, Comunidades Eclesiais de Base ou Grupos de Juventude, para discutir questões referentes à vida, aos problemas e à fé de cada um. O que muitas vezes dá origem a movimentos sociais que vão lutar não só pela melhoria do padrão de vida como também pelo direito de participação política na sociedade. Isto porque o processo de organização das populações carentes deságua naturalmente numa dinâmica de conscientização que leva cada um a reOetir não só sobre a sua vida cotidiana, mas sobre toda a estrutura e funcionamento da sociedade capitalista. Foi o que aconteceu com o Movimento de Educação da Zona Leste, que se originou das dis­cussões de um Grupo de Mães.

A) O inicio do movimento: o problema da taxa da APM

O Grupo de Mães de Monte Santo se reuniu no início de 1980 para discutir os problemas do bairro e, no meio de conversa informal, os participantes descobriram que a matrícula de seus filhos em escolas públicas estaduais estava ameaçada pela exigência de pagamento da taxa da APM. Esta exigência partia da direção das escolas, a taxa era alta para o nível de renda daquela população pobre. Muitas mães não conseguiam matricular seus filhos.

Entretanto, o que vem a ser na realidade essa taxa da APM?

A APM (Associação de Pais e Mestres) foi oficialmente criada pela lei n°12.983, de 15-12-1978. Segundo a legislação, objetiva au­mentar a união entre pais e professores para ajudar no bom funcio­namento da escola ou na sua organização, visando sobretudo os alunos carentes. Para atingir tais objetivos, a APM pode realizar uma coleta de fundos: esta porém não é obrigatória e só se pode fazer após o término do período de matrículas.

As escolas públicas da periferia são normalmente abandonadas pelo Estado. A situação de muitas delas é degradante: faltam vidros, carteiras escolares, muros, iluminação e em alguns casos até água falta. Diante dos problemas e sabendo da ambigüidade da lei e da falta de informação da população, alguns diretores obrigam os pais dos alunos, no momento da matrícula, a que paguem uma importância em dinheiro, que corresponderia à taxa da APM. Com esses recursos financeiros, tentam remediar os problemas da escola. O que nunca devemos esque­cer é que a manutenção da escola pública deve ser garantida pelo Estado e não através das taxas de APM, cobradas ilegalmente da população carente.

No Grupo de Mães de Monte Santo, as reuniões do início de 1980 já estavam se tornando um lamento dessa injustiça. Ou pagavam a taxa, ou seus filhos não estudariam. Como o problema parecia não ter solução, resolveram discuti-lo com outros Grupos de Mães da Zona Leste. Resultado: em pouco tempo todos os Grupos de Mães da região estavam discutindo não só o problema da taxa da APM como também todos os outros problemas que afligiam a educação escolar da região: prédios escolares desmoronando, falta de higiene, falta de segurança, falta de professores, baixo nível de ensino. Nesse processo de discussão, descobriram também que não era obrigatório o pagamento da taxa da APM.

A partir daí, foi possível, no dia 14 de setembro de 1980, a or­ganização de uma assembléia aberta à participação dos moradores in­teressados em discutir os problemas educacionais da região. Nessa as­sembléia, determinou-se:

- imprimir folhetos alertando o restante da população sobre a não­obrigatoriedade do pagamento da taxa da APM;

- editar mensalmente um boletim informativo denominado "Falta de Educação" para denunciar os problemas ou irregularidades das escolas da região e ainda para ajudar na organização do Movimento de Educação que estava nascendo naquele momento;

- organizar um abaixo-assinado que chegou posteriormente a 14 mil assinaturas de pessoas que exigiam que a contribuição da APM fosse espontânea.

Os primeiros frutos dessa organização amadureceram: conseguir que os diretores das escolas públicas da região não obrigassem mais ao pagamento da taxa da APM. Esta questão tinha levado a população a descobrir os outros problemas que as escolas enfrentavam e assim o Movimento continuou com as suas reivindicações.

B) O movimento cresce: o problema do curso noturno

Sentindo que a luta pela melhoria das condições de ensino nas escolas da região necessitava que a população se armasse de bons argumentos, os integrantes do Movimento organizaram uma pesquisa - tentativa de conhecer melhor a situação escolar da região para, quando reivindicassem melhorias, apresentarem um quadro fiel da rea­lidade.

Após várias reuniões, prepararam um questionário através do qual tentariam entrevistar pelo menos 500 moradores para conhecer de perto .quais seriam, agora, as exigências mais importantes. Com essa pesquisa percebeu-se a necessidade que vários jovens sentiam de cursar o 2° grau, que não cursavam devido à necessidade de trabalhar, o que implicaria a obrigatoriedade de estudar à noite. Na região as escolas só funcionavam durante o dia.

Realizaram uma segunda pesquisa que agora consistiria na visita às escolas para conversar com os diretores sobre o motivo do não­funcionamento das escolas no período noturno. Estes, por sua vez, alegaram falta de segurança e de infra-estrutura. Mas os moradores que realizaram a visita às escolas percebiam claramente que, além desses problemas, os diretores não queriam mesmo era ter mais tra­balho e responsabilidade.

Os participantes do "Movimento de Educação" entenderam que teriam de recorrer ao secretário da Educação do Estado de São Paulo, com os números de jovens sem escola, com o número das escolas que só tinham o curso de 1? grau, enfim com o resultado da pesquisa.

No período de 1981 a 1984, organizaram-se várias caravanas com centenas de moradores da Zona Leste que se dirigiam à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para exigir a solução desse problema. Agora, o Movimento de Educação da Zona Leste da Cidade de São

Paulo era amplo e contava com a participação não só dos Grupos de Mães como também com o apoio dos Grupos de Jovens e de outros setores da sociedade.

Depois de três anos de manifestações, o Movimento (que enfren­tou sérios momentos de desânimo e enfraquecimento) conseguiu fi­nalmente em 9 de novembro de 1984 que o secretário da Educação editasse uma resolução pela qual se determinava que toda escola pú­blica de 2° grau do Estado de São Paulo poderia utilizar suas salas de aula ociosas no período noturno, para a implantação de cursos de 2? grau. Junto com a resolução estava a proposta de criação em 13 escolas da Região Leste de cursos noturnos que estariam funcionando a partir de 1985. Foi a segunda grande vitória do Movimento de Edu­cação da Zona Leste da Cidade de São Paulo.

No entanto, a implantação destes cursos não foi assim tão fácil: vários diretores de escolas da região ainda se opunham ao projeto de implantação do curso noturno de 2°grau, pois sabiam que isto lhes traria maior trabalho e responsabilidade. A partir daí, esses diretores de escola tentavam impedir a consolidação desses cursos, não aceitando matrículas de alunos, evitando assim a formação de novas classes.

Os moradores que integravam o Movimento decidiram encami­nhar nova queixa ao secretário da Educação. Com o que os moradores de Pedro Nunes conseguiram autorização para que eles mesmos pas­sassem a organizar as matrículas necessárias para o funcionamento dos cursos noturnos. Essa autorização logo chegou para as outras vilas da região também.

C) Os novos rumos da educação na Região Leste da cidade de São Paulo

Uma outra realização dessa experiência de organização escolar foi conseguir também que a região contasse com a implementação de cursos supletivos de 2° grau e que passaram a funcionar regularmente a partir de agosto de 1985, atingindo adultos que haviam um dia sido excluídos da escola e que agora teriam uma nova chance de voltar a estudar.

Em seguida, o "Movimento de Educação" iniciou uma campanha para distribuição de material escolar e, em 1987, iniciou a discussão em torno da possibilidade da criação de uma universidade popular para a classe trabalhadora.

Com essas lições, podemos aprender que a construção de uma escola pública democrática não se dá apenas como pensava Karl Mannheim (capítulo 3) através da ação de cientistas, parlamentares ou do Estado, e sim através da força dos movimentos populares, que com a sua organização conseguem alterar a política pública, forçando-a a levar em conta os interesses da população pobre das periferias deste país.

Devemos levar em consideração também o fato de que todo esse processo de organização e luta popular pela democratização da escola foi um processo educativo, pois fez com que a população aprendesse a realizar assembléias, elaborar discursos, organizar jornais e conhecer o funCionamento do Estado e da sociedade de modo crítico. Os par­ticipantes do "Movimento de Educação da Zona Leste" da Cidade de São Paulo aprenderam e, agora, nos ensinam alguns caminhos para a construção de uma nova escola em nossa sociedade.
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