A) A escola: reprodução da sociedade de classes
Em relação à classe trabalhadora, dá-se o contrário: ao ingressar na escola, a criança pobre depara com uma linguagem da burguesia que não é sua. A criança pobre se encontra diante de uma maneira de falar ou agir do professor, diante de livros e conteúdos que não correspondem à sua vida cotidiana de trabalho, pobreza e sofrimento. Nesse caso, segundo Establet-Baudelot, para a criança da classe trabalhadora a escola não é prolongamento da sua vida, é rompimento, é outra realidade: outro mundo, difícil de ser interpretado. Muitas vezes, a criança da classe trabalhadora não assimila os conhecimentos que a escola lhe transmite porque não entende a linguagem com que os conhecimentos lhe são transmitidos: a linguagem não tem ligação com o seu dia-a-dia. O universo escolar aparece aos olhos da criança pobre como ambiente estranho e ameaçador que a corrige a todo instante e acaba por inibí-la.
Com os argumentos desenvolvidos acima, Establet-Baudelot tentam desmistificar a idéia, muito comum atualmente, que atribui à própria criança e sua família as causas do fracasso na escola.
Em que gestos isso se manifesta? Em primeiro lugar, segundo os autores, os professores aparecem como os primeiros a aceitar as normas escolares e a impor essas normas ao aluno. Em segundo lugar, os professores disciplinam os seus alunos para que produzam na escola como se produzissem numa fábrica, em função da recompensa-punição, porque é o professor quem recompensa alguns e pune outros.
É a partir do eixo recompensa-punição que o professor encontra meios para controlar seus alunos de tal forma que inibe aqueles que possuem valores sociais diferentes dos encontrados na escola, favorecendo o aparecimento do aluno-padrão: o submisso. Nesse sentido, nem sempre a nota, prova ou avaliação correspondem a uma forma de medir o crescimento intelectual de uma criança. São instrumento de controle do professor para punir alunos tidos como maus, que às vezes são os mais criativos.
Nas teorias, a escola aparece inicialmente em nossa sociedade como se fosse instituição única, que trata todos os alunos da mesma forma e uma instituição onde se elaboram o conhecimento e os valores sociais; capaz de preparar os indivíduos para a vida em sociedade. No entanto, se essa é a idéia inicial que temos da escola, a partir do que estudamos na primeira unidade deste livro, devemos saber agora que as pesquisas e análises que Establet-Baudelot realizaram têm o mérito de demonstrar a parcialidade dessa visão inicial: na verdade, a escola é a instituição mais eficiente para segregar as pessoas, por dividir e marginalizar parte dos alunos com o objetivo de reproduzir a sociedade de classes.
Para chegar a essas conclusões, que tentam desmistificar o papel da escola na sociedade capitalista, esses dois autores realizaram pesquisas nas escolas da França, nas quais descobriram a existência de duas redes de escolarização: uma destinada aos filhos dos membros da classe empresarial e outra destinada aos filhos dos membros da classe trabalhadora.
A primeira classe social - por ser dominante - teria acesso às melhores escolas, seus filhos teriam tempo e recursos para estudar, enquanto os trabalhadores, sem recursos financeiros e por causa das jornadas de trabalho, são obrigados a se contentar com as piores escolas, não atingem as notas necessárias para entrar nas melhores ... Além disso, para valorizar a sua educação, a classe empresarial conta com disponibilidade e recursos para freqüentar outras atividades que complementam a formação e educação escolar: pode participar de cursos especiais de línguas estrangeiras, música, dança ou ainda treinamentos e atividades esportivas. Por outro lado, a classe trabalhadora se vê limitada quando muito a freqüentar cursos noturnos, sem possibilidade alguma de freqüentar cursos complementares e de aperfeiçoamento.
Segundo Establet-Baudelot, a classe empresarial se escolariza para se perpetuar na condição de classe dirigente, dominante; são os alunos que conseguem terminar o curso secundário e ingressar num bom curso superior. A essa rede de escolarização da elite os dois autores atribuem a sigla SS (secundário/superior). Do outro lado, encontramos a classe trabalhadora, que se escolariza perpetuando a condição de classe dirigida, dominada: são os alunos que mal conseguem terminar o primário e lutam para conseguir uma vaga em algum curso profissionalizante. Jamais chegam, enquanto classe, ao curso superior, são os excluídos. A essa rede de escolarização precária das massas, os dois autores atribuem a sigla PP (primário/profissionalizante).
Essa diferença na forma de escolarização da classe empresarial e da classe trabalhadora não aparece de forma clara; em outras palavras, as duas redes de ensino, SS e PP, coexistem de forma dissimulada. Aparentemente a escola se apresenta como sendo única, universal, oferecendo oportunidades a todos. Essa aparência se alicerça na ideologia.
Establet-Baudelot reafirmam a idéia de Karl Marx sobre a escola como instituição reprodutora da ideologia, instituição que serve aos interesses da classe empresarial precisamente por apresentar esses interesses particulares como se fossem os de todos. Nesse contexto, a escola reproduz os valores, as idéias, a cultura, o mundo da classe empresarial como o único mundo correto e possível.
Em resumo, o processo de escolarização é diferente para cada uma das classes sociais, embora a ideologia tente mostrar que é o mesmo. A classe empresarial recebe uma escolarização que lhe permite obter os conhecimentos necessários para o seu exercício de classe dirigente. A classe trabalhadora passa por uma rede de escolarização que lhe possibilita apenas exercer um trabalho disciplinado dentro de sua condição de classe dirigida.
B) A linguagem que aparece na escola
Podemos, simplificadamente, entender pelo termo linguagem a forma ou o jeito com que transmitimos a outras pessoas os conhecimentos, valores, idéias. A linguagem é, portanto, a soma dos recursos que nos permitem divulgar informações. A linguagem não é única, pode dar-se de vários modos. Em relação à escola, podemos afirmar que a linguagem se apresenta, por exemplo, no discurso do professor ou nos seus gestos, no conteúdo dos livros adotados, nos programas de ensino, nas regras de convivência ou em normas disciplinares. Tudo são meios para expressar idéias, sentimentos e modelos de comportamento: tudo isso se constitui na linguagem da escola.
A linguagem é, segundo Establet-Baudelot, muito semelhante àquela que aparece na vida da classe empresarial. Em outras palavras, aquilo que o professor diz ou faz, aquilo que aparece nos livros e as regras da escola são na maioria dos casos semelhante ao que um pai de família de classe dominante fala ao filho, semelhante aos livros encontrados em sua casa e até semelhante às regras de convivência nesta família. Nesse sentido é que Establet-Baudelot afirmam que, para a burguesia, a escola é prolongamento da vida cotidiana, pois a linguagem que a classe empresarial encontra é a mesma utilizada em família.
Em resumo, por tratar com a mesma linguagem crianças de classes sociais diferentes, a escola reproduz a desigualdade. Enquanto a criança da classe burguesa conhece essa linguagem, pois a vive no cotidiano, a criança pobre se encontra diante de linguagem nova que terá de dominar com muito esforço e sacrifício. Esse fato se reflete no aprendizado dessas crianças, pois enquanto a primeira aprende com facilidade, a segunda terá muita dificuldade. É óbvio que o desempenho da criança pobre na escola capitalista será diferente do desempenho da criança rica.
C) Explicação do fracasso escolar
O que discutimos no item anterior explica por que tantas crianças abandonam a escola depois de repetir a mesma série por mais de três anos consecutivos.
A criança da classe dominante - encontrando uma linguagem familiar ao entrar na escola - tenderá a ter ótimo desempenho, aprenderá com facilidade, terá as melhores notas e conquistará no futuro os melhores títulos universitários. A criança da classe dominada, ao entrar na escola primária, irá se defrontar com uma linguagem que lhe é estranha, terá dificuldades em aprender, as suas notas serão baixas até que, um dia, desmotivada, ou não podendo mais, abandonará a escola.
Afirma-se constantemente que a criança pobre, mal-alimentada, não é inteligente; que a família desintegrada leva a criança a se desinteressar da escola. A criança pobre não se esforça e não gosta do ensino e por isso, através de suas próprias deficiências, não será capaz de vencer na vida. Com isso, inocenta-se a escola e se culpa o próprio aluno ou a sua família pelo fracasso escolar.
Mas Establet-Baudelot denunciam que a escola, sutilmente, através de sua linguagem, marginaliza a criança pobre. Esse contato com uma linguagem diferente daquela do cotidiano da classe trabalhadora já aparece no ingresso na escola primária. Inicia-se o processo de divisão das crianças segundo suas origens de classe. É na série primária que encontramos os maiores índices de reprovação: encontramos também a formação de classes especiais compostas por alunos repetentes que passam (por isso mesmo) a ser postos de lado. Assim, a escola primária divide, e divide para sempre: aí começa o processo de exclusão da classe trabalhadora da escola.
D) Professores e alunos
Nos itens anteriores, percebemos que a análise de EstabletBaudelot sobre a escola na sociedade capitalista nos faz percebê-Ia como instituição a serviço da classe dominante que acaba reproduzindo a sociedade de classes. Dentro dessa concepção, o professor se apresenta também como elemento de reprodução das desigualdades sociais. Na sala de aula, a educação formal se concretiza e nela o professor tem papel importante. Em outras palavras, se a educação formal se apresenta na sala de aula e se a instituição está a serviço da classe dominante, pode-se concluir que o professor estará objetivamente a serviço dos detentores dos meios de produção.
Geralmente, o modelo de bom aluno que o professor tem em mente corresponde à criança que nunca pergunta, não reclama, sempre aceita o que o professor diz, não conversa e nem fica de pé na sala de aula, numa palavra: o aluno autômato, submisso. Ao contrário, o aluno que faz muitas perguntas, que nem sempre concorda com o professor; enfim o aluno que questiona é tido como mau e será punido muitas vezes com uma nota baixa.
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